Acidentes de trânsito com vítimas fatais envolvendo motoristas embriagados despertam, com frequência, comoção social, repúdio e exigência de respostas penais severas. O debate jurídico que surge é inevitável: quando um motorista embriagado provoca uma morte no trânsito, ele deve ser responsabilizado por homicídio culposo — típico do Código de Trânsito Brasileiro — ou por homicídio doloso, na modalidade de dolo eventual, que implica uma pena muito mais severa e julgamento pelo Tribunal do Júri? O tema ganha contornos ainda mais delicados quando se observa que, momentos antes do acidente, o condutor, já embriagado, sofreu um episódio de perda súbita de domínio fisiológico — como um vômito, desmaio ou crise de desorientação — que comprometeu sua capacidade de atenção, percepção e reflexo. Diante dessa realidade concreta, é razoável sustentar que o motorista, nesse exato instante, aceitou o risco de matar? O debate se torna ainda mais complexo quando, em vez da embriaguez, surge uma situação diferente, mas com efeitos semelhantes: o motorista não havia consumido álcool, mas fazia uso de um medicamento que, sem que soubesse, provocou efeitos colaterais severos — como náusea, tontura, vômito ou até perda de reflexo. Nesse contexto, o motorista pode ser responsabilizado penalmente? É crime ou fato atípico? E mais: nessa circunstância, a tragédia se apresenta em sua forma mais cruel, pois o acidente produz, na verdade, duas vítimas — a pessoa que infelizmente perde a vida e o próprio condutor, que jamais desejou esse desfecho e foi surpreendido por um evento fisiológico absolutamente imprevisível, tornando-se alguém que carrega a dor de uma tragédia que não previu nem quis. A questão não é trivial e exige uma análise jurídica rigorosa. Para respondê-la, é essencial compreender como o Direito Penal brasileiro tem lidado com isso — especialmente após alguns julgados paradigmáticos do Superior Tribunal de Justiça — e, também, como esse debate é enfrentado no Direito Penal Alemão, cuja dogmática penal é internacionalmente reconhecida pela precisão teórica. O conceito de dolo eventual é relativamente conhecido: ocorre quando alguém prevê que sua conduta pode gerar um resultado (como a morte) e, mesmo assim, aceita o risco. É o famoso raciocínio: “Se acontecer, paciência.” Nos últimos anos, sobretudo nos crimes de trânsito, tem-se observado uma expansão preocupante da aplicação do dolo eventual. Muitas vezes, o simples fato de o condutor estar embriagado e dirigindo já tem sido interpretado como suficiente para que ele responda por homicídio doloso — e não mais por homicídio culposo. Entretanto, essa visão sofreu um freio relevante, quando o STJ, no julgamento do Recurso Especial 1.689.173/SC, sob relatoria do ministro Rogério Schietti Cruz, firmou um entendimento muito claro: a embriaguez, por si só, não é suficiente para caracterizar dolo eventual. O ministro Schietti foi taxativo em seu voto: “Considerar que a embriaguez ao volante, de per si, já configuraria a existência de dolo eventual equivale a admitir que todo e qualquer indivíduo que venha a conduzir veículo automotor em via pública com a capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool responderá por homicídio doloso, ao causar, por violação à regra de trânsito, a morte de alguém.” Na prática, isso significa que a imputação por dolo eventual exige mais. Exige uma análise concreta do comportamento do motorista: ele de fato assumiu o risco? O cenário não comporta atalhos jurídicos que transformem a responsabilidade penal subjetiva em algo presumido ou automático. Imagine, então, uma situação nada incomum: um motorista, após ingerir bebidas alcoólicas, decide, de forma imprudente, assumir a direção. Durante o trajeto, sofre uma crise aguda de mal-estar, vomita e, nesse exato instante, perde momentaneamente a visão, os reflexos e a capacidade de conduzir, vindo, então, a atropelar e matar um pedestre. A dúvida é inevitável: nesse cenário, é possível sustentar que esse motorista aceitou conscientemente o risco de matar? A resposta, na ótica do próprio STJ e da boa doutrina penal, é negativa. O dolo eventual exige que o agente possua domínio psíquico sobre a situação de perigo, ou seja, que ele, mesmo prevendo a possibilidade do resultado, permaneça indiferente a ele, aceitando-o. Quando ocorre um episódio fisiológico súbito, como um vômito — que, além de consequência da embriaguez, provoca uma perda involuntária de atenção e controle —, rompe-se esse elo subjetivo indispensável ao dolo eventual. A conduta continua sendo reprovável, claro, mas se desloca para a esfera da culpa gravemente qualificada, especialmente considerando a decisão anterior de dirigir sob risco. A mesma linha de raciocínio se aplica, e com ainda mais força, quando o evento não decorre de álcool, mas do uso de um medicamento. Se o motorista não sabia, nem podia razoavelmente saber, que o remédio que tomou causaria efeitos colaterais severos — como vômito, vertigem ou perda de reflexos —, o acidente que ocorre nessas circunstâncias configura um fato atípico penalmente, pois falta o elemento essencial da previsibilidade. E aqui o Direito Penal encontra seu limite mais delicado: a tragédia não atinge apenas a vítima fatal, mas também o próprio condutor, que, sem jamais desejar o resultado, vê-se transformado em alguém que carrega para sempre o peso de uma morte que jamais aceitou, nem poderia prever. Nessa configuração, há, claramente, duas vítimas. Por outro lado, se o motorista tinha conhecimento dos efeitos do remédio, e mesmo assim optou por dirigir, aí sim há espaço para discutir a configuração de homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302 do CTB), pela violação do dever objetivo de cuidado — mas, ainda assim, não há espaço legítimo para falar em dolo. Essa compreensão não é exclusividade brasileira. O Direito Penal Alemão, referência mundial em rigor dogmático, já possui há décadas uma construção muito bem delineada sobre esse tema. Na Alemanha, para que haja dolo eventual (Eventualvorsatz), exige-se que o agente, além de prever, aceite conscientemente o risco. Mais do que isso, ele deve manter, no momento da ação, um mínimo de domínio psíquico sobre sua conduta. Autores como Claus Roxin e Hans-Heinrich Jescheck são categóricos ao afirmar que, se o condutor, por efeito da embriaguez ou de qualquer condição fisiológica repentina — incluindo vômito, desmaios ou desorientação súbita —, perde controle sobre reflexos, visão e capacidade de reação, não há como imputar dolo eventual. Nesses casos, a responsabilidade penal se desloca, sim, para a culpa qualificada, e a análise se concentra no momento anterior à condução — quando o agente, conscientemente, decidiu dirigir exposto a um risco previsível, mas não a um resultado letal específico. Da mesma forma, se o efeito adverso decorre do uso de medicamento e este era imprevisível, trata-se de um caso fortuito absoluto, excludente de responsabilidade penal. O Direito Penal, afinal, não pune o adoecer, não pune eventos imprevisíveis e inevitáveis, mas sim condutas conscientes e evitáveis. É preciso reconhecer que o Direito Penal não serve apenas para satisfazer demandas sociais imediatistas. Ele serve, sobretudo, para proteger os próprios cidadãos contra o abuso punitivo do Estado, garantindo que ninguém seja condenado sem que se demonstre, de forma clara e precisa, que preencheu os elementos subjetivos do tipo penal. Por isso, não basta apontar que o motorista estava embriagado, ou que fez uso de algum medicamento. É necessário investigar se, no momento do fato, ele ainda possuía domínio, reflexo, discernimento e capacidade de aceitar conscientemente o risco de provocar uma morte. Quando um evento como o vômito — que resulta na perda súbita de atenção — se interpõe entre a decisão de dirigir e o acidente fatal, ou quando efeitos colaterais imprevisíveis de um medicamento resultam em perda de controle, o caminho mais coerente, tanto no Brasil quanto na Alemanha, é responsabilizar o condutor na esfera da culpa, se houver previsão do risco, ou reconhecer a atipicidade, se não havia como prever. Em nenhum cenário é lícito forçar uma imputação dolosa. E quando o fator gerador é um medicamento cujos efeitos não podiam ser razoavelmente antecipados, a tragédia se duplica: não há apenas uma vítima, mas duas. A que perde a vida, e o condutor, que, embora fisicamente vivo, passa a carregar o peso moral e psicológico de um resultado que nunca quis, nunca previu e nunca aceitou. A dor penal não resolve essa tragédia. A dor humana, essa sim, permanece.
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