No dia 15 de junho, o mundo se curva diante de uma verdade desconfortável: milhares de idosos vivem seus últimos anos sob a sombra da violência, do abandono e da negligência. O Dia Mundial de Conscientização da Violência Contra a Pessoa Idosa, instituído pela ONU, não é apenas uma data — é um grito por humanidade.
No Brasil, esse grito encontra ecos profundos. Vivemos uma revolução silenciosa, a do tempo. Somos um país que envelhece rapidamente, mas que ainda hesita em reconhecer o valor da experiência, a sabedoria da lentidão e a dignidade do corpo que já caminhou muito.
Não faz tanto tempo que envelhecer significava desaparecer. A velhice era um quarto nos fundos, uma cadeira de balanço no silêncio. Foi apenas com a Constituição de 1988 que os idosos saíram da invisibilidade jurídica para ocupar um lugar de dignidade na ordem social. O artigo 230 da “Constituição Cidadã” afirmou, pela primeira vez, que é dever da família, da sociedade e do Estado amparar a velhice — como se dissesse: “ninguém envelhece sozinho”.
Mas essa conquista não surgiu do nada. A construção dos direitos da pessoa idosa no Brasil é fruto de uma longa jornada ética, política e social. Embora tenha ganhado força com a redemocratização, suas raízes remontam a compromissos internacionais e ao lento amadurecimento da consciência coletiva.
Em 1982 e 2002, nas Assembleias Mundiais sobre Envelhecimento da ONU, realizadas em Viena e Madri, o envelhecimento foi reconhecido como questão de direitos humanos. Esses encontros inspiraram o Brasil — e muitos outros países — a enxergar o idoso como sujeito de direitos, e não apenas como destinatário de cuidados.
Seguindo esse impulso global, em 1994, o país criou a Política Nacional do Idoso, prevendo autonomia, integração e participação social para os que envelhecem. Ela criou o Conselho Nacional do Idoso e convidou a sociedade civil a compor uma nova visão intergeracional. Ainda assim, muitas de suas promessas não se concretizaram plenamente — um espelho do abismo entre leis e realidade.
O passo seguinte, mais firme, viria em 2003 com o Estatuto do Idoso. Mais do que uma lei, foi uma declaração de princípios: envelhecer é parte da vida — e deve ser respeitado como tal. O Estatuto garantiu atendimento preferencial, criminalizou maus-tratos, proibiu discriminação por idade e assegurou direitos fundamentais em áreas vitais como saúde, transporte, previdência e justiça. Foi, enfim, o reconhecimento de que envelhecer é um direito — não uma sentença.
No plano internacional, a luta também avançou. Em 2015, a Organização dos Estados Americanos aprovou a Convenção Interamericana sobre os Direitos dos Idosos — o primeiro tratado internacional voltado exclusivamente a esse público. O Brasil assinou, mas até hoje não ratificou o texto. A ausência de ratificação mantém o país formalmente afastado de um pacto que poderia reforçar, no plano jurídico, o que já deveria ser inegociável no plano moral: a dignidade da velhice.
Ainda assim, os dados desafiam as promessas. Somente em 2023, mais de 47 mil denúncias de violência contra idosos foram registradas no Disque 100. Em quase metade dos casos, os agressores são os próprios filhos. São histórias que se repetem em silêncio: o cartão de aposentadoria retido, o grito que ninguém escuta, o abandono que pesa mais que qualquer dor física.
O Brasil avançou no papel — mas tropeça na prática. Falta estrutura pública para cuidar, informação para proteger e, sobretudo, cultura para respeitar. O idoso ainda é, muitas vezes, um corpo inútil aos olhos da sociedade produtiva. A lógica do descarte — típica dos tempos modernos — penetra também nos lares.
A questão que se impõe é: como queremos envelhecer? E, mais do que isso, como queremos que envelheçam os nossos? O futuro não é uma geração distante. Ele já chegou, e tem cabelos brancos.
Envelhecer com dignidade é reconhecer que a velhice não é fim — é culminância. É devolver, com gratidão, o que recebemos em forma de afeto, trabalho, conhecimento e memória. Cuidar dos idosos é uma forma de amar o tempo. É proteger o que seremos, porque, no fundo, todos somos futuros velhos.
A história da evolução dos direitos da pessoa idosa no Brasil é, antes de tudo, uma história de luta contra o esquecimento. De Viena a Brasília, da ONU ao coração das famílias, essa trajetória nos convida a tornar visível o que a pressa e a indiferença tantas vezes invisibilizam.
Neste mês de junho, não basta lembrar os números ou repetir discursos. É preciso sentir. E, sobretudo, agir. Porque o tempo, esse mestre silencioso, um dia nos colocará do outro lado — e então saberemos, na pele, se fomos capazes de honrar quem veio antes de nós.
.